BLOCO DE ESQUERDA CALDAS DA RAINHA

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sábado, 29 de outubro de 2011

A culpa é dos políticos

Escorregamos rapidamente na espiral da austeridade selectiva. Sem corrimão a que nos segurarmos, a crise, que começou por se sentir como um incómodo que até dizia respeito mais aos outros, sente-se cada vez mais como um aperto que ameaça tornar-se esmagador para a grande maioria.
A descida rápida nesta espiral de sufoco intensificou a crítica à “política” e aos “políticos” que circula de boca em boca e se apresenta como auto-evidente. Isto apesar deste ser um discurso com raízes profundas. Desde há muito, quem quisesse buscar audiência instantânea, do café à internet, sabia muito bem que o fazer: maldizer os políticos tornaria o resto da mensagem mais fácil de engolir.
Apesar da quase omnipresença, este discurso escapa muitas vezes ao escrutínio. Porque os que se situam fora dessa evidência não se dignam dar-lhe resposta. Porque os que se situam dentro acreditam tanto nela que estão convencidos que não vale a pena sequer parar para pensar nos seus efeitos práticos nem avaliar a quem interessa politicamente. Bastaria simplesmente alegar que é o povo ou o cidadão comum quem fala pela nossa boca para escapar assim magicamente à política. Ter-se-ia assim a palavra derradeira que mataria a possibilidade de discussão política. Depois desta não haveria mais nada a discutir. Contudo, como que por ironia, dizer que a “culpa dos políticos” e que “eles são todos iguais” é ainda e sempre fazer política. Por isso, é pertinente uma breve incursão pelas suas causas e consequências políticas.

A crítica anti-política enquadra-se numa crise profunda de representatividade das democracias ocidentais. A política mostra-se num ciclo vicioso que traz sempre mais do mesmo, até porque ao liberalismo da direita opõe a esquerda governamentalizada apenas uma caricatura social-liberal. A democracia actualmente existente surge assim a muitos olhos como uma alternância sem alternativa, uma mudança do pessoal político de turno. A ideia de escolha, já limitada pelos sistemas que se aproximam do bipartidarismo, é desafiada também pela tecnocracia, como se já só houvesse lugar para uma gestão de contas. Ao mesmo tempo, a política é distribuída como mau espectáculo mediático e ditada numa linguagem especializada e estranha, um economês de segunda categoria, que surge complexificada como meio de afirmação de um determinado estatuto. E, finalmente, o território próprio da democracia surge cruamente esvaziado pelo poder económico globalizado. Assim, a mobilização partidária e a participação eleitoral decrescem.
A crítica anti-política tem ainda componentes que se poderiam denominar como psicológicas que não se devem desprezar. Existe porque permite uma identificação grupal não classista que tem um efeito de ligação cúmplice e fácil com o outro. Da identificação até ao um sentimento superioridade moral vai só um passo: eles, políticos corruptos e maus, seriam como que uma espécie diferente de nós, os honestos apolíticos. Enquanto prémio de consolação moralista, esta é uma forma de dirigir o rancor social contra aqueles que são identificados como poderosos.
Outras causas do sucesso da crítica anti-política poderiam ser procuradas na meia-idade da história contemporânea nacional. Em alguns casos, encontra-se neste discurso um salazarismo perene, herdado da política de ódio à política, desejando um poder político que se imponha esmagando a política que supostamente dividiria o país (eles, os políticos, sempre culpados e todos iguais, ainda por cima puxam cada um para seu lado).
Reconhecem-se aí os saudosismos de juventudes idealizadas: os bons velhos tempos em que não existia política, em que era tudo tão bonito e simples. Só que, para idealizar assim este passado, é preciso reconstruí-lo à custa da destruição da memória da fome e da miséria, da ausência de direitos sociais mínimos à educação, à saúde etc. que foram escolhas políticas. Já para não falar na repressão assassina e no colonialismo.
O sonho da ditadura apolítica cor-de-rosa apresentada como sem crime e isenta de corrupção só é possível para quem queira ignorar que as ditaduras se mostram puras porque dominam os canais de comunicação e censuram a informação que não lhes interessa. Tal como sabemos que o pesadelo da democracia corrupta é potenciado pela possibilidade da informação circular e pela liberdade de criticar, o que, parecendo para alguns tão pouco é afinal tanto…
Acreditar na sua fantasia é, portanto, esquecer que as ditaduras são espaços de corrupção institucionalizada. Antes de mais, há que não esquecer que o nome próprio do salazarismo era corrupção: este era um sistema de distribuição descarada de favores políticos e económicos aos grupos dominantes.
Poder-se-ia continuar a acompanhar a história contemporânea do país procurando na fase seguinte outras tantas razões para que o discurso anti-política se tivesse instalado: as esperanças frustradas depois da revolução de Abril, a forma como os partidos se mostraram nesta altura o que não eram, encostados de forma oportunista a um esquerdismo em que não acreditavam, o percurso de alguns dos revolucionários da época que se converteram no seu contrário, ajudando assim à percepção de que “eles querem é poleiro” e que mudam de conversa consoante o sopra o vento.
Mas, sobretudo, a crítica anti-política nasce da base concreta das práticas políticas dominantes. E, quando se pedem “sacrifícios” a quem pouco tem, essas tornam-se ainda mais chocantes. A culpa do discurso da culpa dos políticos será, assim, em primeiro lugar, dos políticos que nos têm governado.
Governo após governo, e no poder local reproduz-se o mesmo, reencontram-se as mesmas benesses escandalosas que os políticos se atribuem a si e aos “seus”, numa política de favor e de compadrio político ou até familiar que se esconde detrás dos discursos oficiais. Reencontram-se a promiscuidade entre interesses particulares e bem público e as entradas para o grupo fechado dos administradores milionários das maiores empresas nacionais. Reencontram-se as ainda mais escandalosas benesses em detrimento do erário público dada aos grupos económicos que mandam no país e que fazem e desfazem governos. Reencontra-se, no fundo, a incapacidade dos rotativos no poder de fazer política sem que seja de forma simultaneamente subserviente e oportunista.
No tempo rápido da contemporaneidade, a dança das cadeiras políticas nas mudanças de ciclo acentua o descrédito. Estabeleceu-se no centrão português como normalidade uma estranha dialéctica entre governar e estar na oposição que autoriza a promessa enquanto palavra descartável, o programa enquanto letra morta porque o estado das contas nunca é o que se imaginava, porque o desvio do outro é sempre colossal, porque o mundo muda rapidamente. Dando a impressão que a democracia se resumiria às promessas não cumpridas, como um regime de marketing mentiroso, esta forma de fazer política assegura o poder a curto prazo para quem a ponha em prática mas descredibiliza a política.

Acontece que muitas das queixas sobre os “políticos” fazem mais do que a crítica destas práticas. Aceitam sem questionar que a política é o que os outros fazem e que tem de ser como “eles” a fizeram. Interiorizando o papel de figurantes, de “velhos dos marretas”, aceitam a menorização.
Para além disto, extravasam para a crítica de qualquer possibilidade de fazer política e, assim, arriscam deitar fora o bebé com a água do banho, promovendo uma generalização tão alargada que marca todos com os ferros da mesma ignomínia: “os políticos são todos iguais”, diz-se, todos os governos, todas as oposições, todos os conservadores, todos os revolucionários, “farinha do mesmo saco”.
Ao dizê-lo, o aparente inconformismo parece dar lugar a um conformismo profundo: se são todos iguais não faz de todo diferença quem lá esteja, se são todos iguais não faz sentido participar politicamente porque isso só me tornaria igual aos maus, não vale a pena mudar nada porque tudo está condenado a ficar sempre na mesma.
A voz aparentemente crítica transforma-se em desmobilização porque sucumbe a um efeito do sistema político que coloca na mesa alternativas limitadas: já votei em A e em B, eles fizerem igual por isso… Por isso, aceita-se a anulação da possibilidade de diferença.
Forma de resistência de baixa de intensidade do povo, é também um efeito próprio do tipo de poder político que hoje temos. Partindo de um núcleo justo de bom senso, é também uma expressão da volúpia da queixa, da passividade militante, do negativismo. Denúncia acérrima dos abusos de poder, corre também, em alguns casos, o risco de os naturalizar: os políticos são como são, se lá estivesse outro era a mesma coisa.
Sendo assim, não é surpreendente que seja uma crítica confortável para muitos políticos do arco do poder. Porque impossibilita qualquer política do oprimido e porque transforma a crítica no tal conformismo profundo, é uma forma de anular descontentamentos, varrendo-os para fora do quadro político.
Só que, do ponto de vista da democracia, é uma forma perigosa. A crítica anti-política é permeável a manipulações e torna-se frequentemente o melhor seguro de vida da mais perversa forma de político: o populista demagogo anti-político que procura popularidade gritando o que os outros gostam de ouvir. Ao contrário de quem maldiz a política não escondendo interesses e acreditando que não há solução, esta personagem fá-lo escondendo retoricamente as suas alternativas. Até porque a alternativa a esta política é outra política. No aproveitamento populista desta crítica há o perigo totalitário, escondem-se aí cobardemente fascismos variados que prometem o regresso a um tempo sem política.
E há sempre outros que beneficiam da atenção exclusiva dada aos políticos enquanto bode expiatório de tudo. Num sistema em que a política até manda pouco, este discurso promete decapitar o executante deixando incólumes interesses mais graúdos, num escandalizar-se selectivo que imola (tal como os resgata depois) actores secundários no altar da política, enquanto continua o negócio e a exploração correntes. Interesses a quem interessa pouco a vaidade de quem se senta na poltrona do poder político e as migalhas que lhe distribui quando a última palavra é sua.
Além disso, sendo uma forma de identificação confusa, promete anular a possibilidade de outros sujeitos colectivos. Enquanto somos uma massa anti-política não somos, por exemplo, trabalhadores.

Temos assim um antagonismo resignado que triunfa no café mas deixa tudo na mesma. E numa altura em que a crise aperta torna-se ainda mais urgente algo diferente. Ao contrário do que pensam os zangados com a política, é preciso fazer política contra a política da crise. Os indignados que se vão manifestando pelo mundo inteiro mostram esta necessidade. É preciso encontrar-se, propor, convergir, divergir, criar plataformas políticas. Por isso, os indignados podem sonhar ser mais, ser uma das formas da política futura.
E se os zangados com a política se transformassem em indignados?


de Carlos Carujo

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